Volume 13 - Issue 80 / August 2024
DOI: https://doi.org/10.34069/AI/2024.80.08.2
How to Cite:
Otoni de Souza , L., Lopes Simonian, L.T., & Pahoona Corbin, H. (2024). Superando a pandemia: o papel fundamental das lideranças nas comunidades quilombolas do Marajó. Amazonia Investiga, 13(80), 19-32. https://doi.org/10.34069/AI/2024.80.08.2
Superando a pandemia: o papel fundamental das lideranças nas comunidades quilombolas do Marajó
Overcoming the pandemic: the fundamental role of leaders in quilombola communities in Marajó
Received: July 1, 2024 Accepted: August 27, 2024
Written by:
Luciana Otoni de Souza
https://orcid.org/0000-0001-8417-7062
WoS Researcher ID: KYQ-7792-2024
É doutoranda junto ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido – PPGDSTU (Núcleo de Altos Estudos da Amazônia – NAEA/ Universidade Federal do Pará – UFPA), Brasil. Tem Mestrado em Engenharia Civil - Recursos hídricos e Saneamento ambiental; Graduação em Engenharia Sanitária e Ambiental; Especialização em Engenharia de Segurança do Trabalho; Especialização em Gestão Ambiental e Manejo de Paisagem.
Ligia Terezinha Lopes Simonian
https://orcid.org/0000-0001-6690-7244
Ph.D., em Antropologia com Pós-Doutorado pela Universidade da Cidade de Nova Iorque – CUNY/Estados Unidos da América do Norte. Professora Titular da Universidade Federal do Pará – UFPA, Brasil, com atuação no Núcleo de Altos Estudos da Amazônia – NAEA, onde é docente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido – PPGDSTU (doutorado e mestrado). Tem publicações no Brasil e no exterior.
Hisakhana Pahoona Corbin
https://orcid.org/0000-0001-5885-6053
Tem Doutorado em Ciências: Doutorado com Área de Concentração em Desenvolvimento Socioambiental Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido – PPGDSTU do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia – NAEA/ Universidade Federal do Pará – UFPA, Brasil, onde é Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido – PPGDSTU; Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento do NAEA/UFPA; Graduação em Estudos Ambientais; Curso técnico em Agricultura Geral.
Resumo
Nesse artigo, apresentam-se os principais impactos sofridos por populações quilombolas das comunidades de Mangueiras e Salvá em função da pandemia da Covid-19. Houve uma participação das lideranças locais, a participação social e a do poder público. Dados foram coletas por meio de uma entrevista estruturada, que foi aplicada online. Dados qualitativos foram analisados com base na percepção dos entrevistados acerca da influência da Covid-19 sobre as comunidades. Resultados-chave indicam que a participação social é efetivada por meio de organizações sociais, de grupos criados pelas lideranças locais para o engajamento e divulgação da cultura e das origens quilombolas. Por um lado, a separação das forças locais e o isolamento social dificultam o fortalecimento participativo dessas comunidades. Por outro, o processo de conscientização está presente na busca da melhoria da qualidade de vida através da produção e do consumo sustentáveis.
Palavras-Chave: Lideranças locais, ações comunitárias, comunidades quilombolas, Marajó/Pará, Covid-19.
Abstract
This article examines the impacts of the COVID-19 pandemic on the Quilombola communities of Mangueiras and Salvá in Marajó Island, Pará, Brazil. It investigates the role of local leaders in addressing the challenges posed by the pandemic and highlights their strategies for community resilience. The study employed a qualitative approach, utilizing semi-structured interviews with community leaders. The findings reveal the significant social and economic impacts of the pandemic, including isolation, economic hardship, and increased social vulnerability. The study underscores the crucial role of local leaders in mobilizing resources, implementing preventive measures, and fostering community solidarity. It also emphasizes the importance of strengthening local governance and social participation to address the long-term challenges faced by these communities in the post-pandemic context.
Keywords: Local leaders, Community actions, Quilombola communities, Marajó/Pará, Covid-19.
Introdução
As trajetórias das lideranças em comunidades tradicionais coincidem com a criação desses núcleos familiares, suas lutas e conquistas e o desenvolvimento de atividades que contemplam aspectos culturais e ancestrais que garantam a perpetuação de seus traços mais remotos. A governança enquanto modalidade de gestão dentro das comunidades tradicionais desenvolve um papel fundamental para o crescimento dessas populações, visto que elas entendem e percebem o espaço de moradia como parte de sua história, como uma extensão do “ser” tradicional e que existe uma relação de interdependência com a terra.
De acordo com Lifschitz (2012), governança seria uma prática em que não existe uma instituição controladora de seus espaços e ações, mas sim uma associação de pessoas que vivem de maneira igual, sem privilégios para um determinado grupo ou pessoa. A estrutura organizacional percebida em comunidades tradicionais demonstra certa capacidade de manter as questões produtivas, sociais e ambientais de maneira homogênea.
Isso permite entender que a dinâmica presente nesses espaços compete inevitavelmente com o sistema capitalista adotado pelo Estado, principalmente no meio urbano. Nessa linha, Perez e Souza (2022) apontam que a percepção ambiental dos espaços e ainda o bem-estar social, do ponto de vista da população, dependem diretamente das ações do poder público direcionados para as comunidades em geral. O que se vê, no entanto, é a transferência dessas responsabilidades para as lideranças locais.
A Amazônia brasileira vem desenvolvendo ações que contemplam aspectos da gestão socioambiental, por tratar-se de uma área de diversidade estudada e ainda pouco conhecida. Nela, segundo destaca Shiraishi Neto (2007), são definidas ações pelo governo nas diversas esferas do poder através de políticas e programas que visam mitigar possíveis impactos ambientais trazidos com o desenvolvimento de povos e comunidades tradicionais locais, além de controlar as degradações e conflitos pelo uso e ocupação de terras e recursos naturais.
Em crises, como a provocada pela Covid-19, esses espaços estiveram ainda mais vulneráveis quanto às problemáticas socioambientais e econômico-culturais. E nos termos de Mondardo (2020), destacam-se questões que apontavam para o distanciamento das políticas públicas aplicadas em regiões mais urbanas em detrimento de áreas rurais ou mais distantes dos grandes centros urbanos. Conforme Simonian (2018), assim como os povos tradicionais se organizaram para enfrentar a pressão do capitalismo que adentrava seus espaços nos anos de 1990, tal fato tornou esses povos mais resistentes e conscientes a respeito das interferências externas que receb(em)iam.
As lutas travadas a partir desse contexto histórico permitiram, no entendimento do amparo legal, que os moradores das comunidades tradicionais cobrassem ações dos governantes para atendimento às necessidades. Frente às problemáticas expostas pela pandemia, que destaca as questões sanitárias e de saúde coletiva, esses setores representam parte de um projeto a ser alcançado e viabilizado a esses grupos sociais.
Nesse período, as lideranças, de acordo com as diretrizes implementadas pelo governo estadual e desenvolvendo o seu poder de governança local, procuraram regular as dinâmicas socioambientais e implementar espaços de gestão compartilhada das políticas públicas setoriais e territoriais, juntamente com os demais moradores e com a sociedade civil organizada, envolvidos em consonância com o paradigma democratizante da governança pública.
A importância da participação popular é fundamental, nesse sentido e segundo de Oliveira Gomes et al., (2020), para que a organização e a implementação de ações preventivas e de combate aos efeitos da pandemia da Covid-19 alcançassem os resultados esperados e diminuíssem os casos de contágio pela doença. Diante disso, com este artigo, busca-se demonstrar as principais interpretações por parte das lideranças comunitárias acerca dos impactos gerados pela pandemia da Covid-19 dentro da sua comunidade na ilha de Marajó e no município de Salvaterra-PA.
Optou-se por realizar essa pesquisa no formato de estudo de caso (Yin, 2015), visto que ele consegue articular diferentes perspectivas dentro da investigação da pesquisa e que pode ser aplicado nos estudos de caso como ferramenta de ensino, de etnografias e observação ativa ou participante e dos métodos qualitativos.
O estudo buscou elencar os principais desafios a serem superados em um contexto pós-pandêmico nas comunidades tradicionais estudadas sob a ótica das lideranças comunitárias, apresentando alternativas que auxiliem as governanças locais a superarem os desafios impostos pela pandemia. Nesse sentido, foram identificados aspectos de governança e de governabilidade aplicados no âmbito social dentro dessas comunidades tradicionais que colaboram para a compreensão das ações implementadas e a visibilidade do trabalho realizado por esses grupos sociais diante do poder o público.
Este artigo está dividido em sete etapas que compreendem a introdução, que traz um apanhado geral sobre a situação das lideranças locais em comunidades tradicionais da Amazônia frente a desafios como outrora foi a Covid-19. A segunda etapa trata do marco teórico e revisão de literatura, que apresenta os principais teóricos e estudiosos das áreas da ciência social, antropologia, saúde e meio ambiente com a ligação na temática deste artigo corroborando para o entendimento das problemáticas discutidas. Em seguida é apresentada a metodologia utilizada para a coleta, organização e tratamento dos dados apresentados nesta pesquisa.
Adiante, tem-se as Considerações éticas que destacam a submissão do projeto de tese ao comitê de ética da UFPA que possibilitou a elaboração deste artigo com os dados coletados diretamente nas comunidades. A etapa dos resultados e discussão apresenta as principais inferências capturadas da interpretação dos dados com a indicação de uma representação coesa e fidedigna com a realidade estudada. Sobre as dificuldades observadas através da organização e socialização e nos processos participativos das lideranças comunitárias, pode-se compreender os desafios do pesquisador no trabalho de campo para a realização desta pesquisa. Por fim, as principais conclusões apreendidas a partir das discussões, referenciais e depoimentos destacados ao longo dessa pesquisa.
Nesse sentido, buscou-se através deste artigo apresentar de que modo a atuação das lideranças locais em comunidades tradicionais do Marajó viabilizou a obtenção de recursos para as populações durante a pandemia da Covid-19, bem como se a participação dessas lideranças fez garantir o cumprimento das legislações presentes para a garantia dos direitos direcionados aos quilombolas. Então, pretendeu-se responder os seguintes questionamentos:
A atuação de lideranças locais facilita o acesso a direitos garantido em comunidades quilombolas?
Ao longo da pandemia da Covid-19, o papel das lideranças locais foi fundamental para a aquisição de benefícios para as famílias das comunidades quilombolas?
Marco teórico e revisão de literatura
Como se depreende de Araújo e Simonian (2016), os anos de 1990 foram simbólicos no que diz respeito às ações públicas com relação ao tratamento do meio ambiente, particularmente à sua governança, isso a se ter por referência os conceitos de poder, legitimidade e participação de atores e instituições sociais, governamentais e não governamentais.
A pandemia do Covid-19 trouxe abertamente questões aparentemente superadas, mas que nunca deixaram de existir. Nos termos de Kato et al., (2021), são questões que voltam à luz da discussão para justificar desigualdades e exclusões: guerras étnicas, racismo, escravidão disfarçada ou não, violência de gênero, apartheid social entre outras formas de segregação social e preconceitos sofridos por desses grupos.
A sociedade, mergulhada no caos e considerando o fato de os vírus reproduzirem um planeta com sérios riscos onde os desastres ambientais e sociais se multiplicam, deixa a todas e todos em alerta para o que está por vir dentro da sociedade brasileira, especialmente quanto às comunidades tradicionais, que ficam, por vezes, isoladas e esquecidas dos seus direitos básicos humanos.
De acordo com Rustamzade e Huseynov (2023), o fortalecimento de governos locais, em contrapartida aos governos municipais, consolida o vínculo com a comunidade, fazendo valer os direitos dos cidadãos a partir de legislações específicas que estabelecem o acesso a benefícios importantes para a sociedade como um todo. Tendo em vista que nas principais capitais e municípios do Brasil observa-se a carência da atuação dos governantes públicos, as lideranças locais exercem um papel importante de ascensão político-econômica de comunidades tradicionais, muitas vezes invisibilizadas pelo poder público.
Embora muitos obstáculos surjam no desenvolvimento de políticas locais específicas para estas comunidades, existem ações pontuais que viabilizam o acesso e o aproveitamento das potencialidades locais. Como exemplo e a partir de Pezzuti, & Azevedo-Ramos (2016), tem-se a aplicação de uma economia florestal que se consolida para destacar e manter as florestas sociais que agrupam as comunidades tradicionais.
O desenvolvimento de ações e políticas públicas voltadas para comunidades tradicionais foram surgindo e sendo adaptadas às realidades locais para o enfrentamento da pandemia (Mondardo, 2020), e necessitou de mobilização por parte das lideranças. Nesse caso, a governança explica que mesmo sem a atuação direta do governo, os líderes de comunidades tradicionais e mais afastadas dos centros urbanos podem traçar melhores ações que contemplem as reais necessidades dos moradores das comunidades.
O controle social utilizado no período pandêmico da Covid-19 nas comunidades tradicionais, em específico nas remanescentes de quilombos, demonstrou certo amadorismo e despreparo para o enfrentamento da doença nessas localidades, uma vez que outras pandemias aconteceram na história da humanidade e as resoluções e alternativas para cada uma delas permeava pelo controle social. De acordo com De Almeida, Marin-Acevedo e Melo (2020), essa reprodução das estratégias indica certa regressão de políticas de saúde pública que simplesmente são replicadas como se fossem a dose única para solucionar, curar e tratar as pessoas que tiveram contato com essas doenças.
Na descrição de Rhodes (2005), o uso desse tipo de governança sugere que se tornem auto-organizadas as redes que compõem essa forma de liderança, em que, de maneira similar, podem se auto-organizar, significando ter uma rede comunitária autônoma e independente. Ao mesmo tempo, essa experiência se apresenta como uma interrelação necessária que deve prolongar-se aos povos adjacentes de espaços delimitados como territórios especialmente protegidos.
Sarmento e Sousa (2022) relatam sobre as condições degradantes que se encontravam algumas das comunidades quilombolas do município de Salvaterra, onde não havia serviços de saúde disponíveis nas comunidades, uma vez que desde o início do decreto mundial da pandemia da Covid-19 a gestão municipal fechou os postos de saúde situados dentre outros, nos quilombos Barro Alto, Bacabal, Boa Vista, Caldeirão, Mangueiras, Rosário e Vila União/Campina. Essa postura representa o descaso percebido na região pelos gestores em relação aos quilombolas, deixando essa população à margem das condições básicas de uma sociedade integrada e diante de todas as mazelas inerentes ao vírus, caracterizando uma gestão ineficiente e que pune os menos atendidos, esquecendo a importância dessas populações para o contexto local de sobrevivência da história marajoara.
Riscos anunciados, epidemias crescentes que resultaram na pandemia atual, talvez a primeira de muitas que estão por vir, devem pautar direcionamentos no que se refere às ações para sanar as principais necessidades de populações vulneráveis que dependem de políticas públicas, especialmente daquelas voltadas para a geração de emprego e renda, cuidados com a saúde física e mental, questões sanitárias, promoção de atividades culturais e educacionais, saúde coletiva, entre outras.
Costa de Castro et al., (2022) destacam que dentre as medidas sanitárias previstas e indicadas na época da pandemia da Covid-19 havia: a higienização das mãos com água limpa e álcool em gel 70%; o uso obrigatório de máscaras faciais; o distanciamento e o isolamento social; a proibição de eventos e atividades sociais que gerassem aglomerações. Isso, principalmente, afetou os rituais e práticas do cotidiano das comunidades tradicionais.
Para se conseguir a efetivação de todas essas ações, faz-se necessária uma articulação entre comunidades tradicionais e poder público, sendo isso confirmado no estudo de Sablayrolles, Porro e Oliveira (2019), que destaca que os aspectos técnicos, econômicos e de comercialização, as questões de conflitos com atores externos ou internos às comunidades e as relações com órgãos públicos exigem uma atuação em dois níveis: o local e o regional/estadual.
Para as comunidades tradicionais destacadas no contexto brasileiro – especialmente as remanescentes de quilombos –, é importante a aproximação com outras modalidades de governança independentes, para que fortaleçam suas práticas originárias e que isso fomente suas necessidades básicas, principalmente em tempos de crise humanitária como a da Covid-19. E desse modo, para essa situação se requer aplicação à atuação local das instituições públicas.
Vale ressaltar que diante da amplitude dos casos de infecção pelo vírus em questão, houve propostas sociais no que refere à evolução e distribuição do processo saúde/doença na humanidade. Segundo Pezzuti, & Azevedo-Ramos (2016), tal situação tem sido objeto de estudo, dando origem às várias disciplinas acadêmicas e que fora das ciências da saúde ou parte delas, outras tantas preocuparam-se em compreender este processo considerando seus campos de ação respectivos.
Essa preocupação foi fundamentada em uma crescente desigualdade social e esquecimento pelo poder público em relação à saúde coletiva de populações tradicionais, e que em seu cotidiano já vivem um isolamento social imposto pelo modo de vida da sociedade contemporânea.
O surgimento de um efeito retrógrado na economia mundial, o que impacta substancialmente na produção local e no escoamento de seus itens agrícolas, acaba sendo bloqueado, e muitos sem consumo local podem perder a validade para seu uso, o que significa perda de produção, diminuição de renda e moradores com ainda mais dificuldades econômicas. Além disso, ao mesmo tempo, o modelo de economia imposto pelos colonizadores quando chegaram no país constitui-se como fundamento de conflitos, como se depreende de De Almeida, Marin-Acevedo e Melo (2020).
Segundo Acevedo Marin (2020), foram estabelecidas relações de produção e de trabalho a partir de interesses pessoais dos estrangeiros, as quais eram antagônicas e incompatíveis com o tipo de economia praticada pelos povos que viviam na Amazônia. Desde a colonização, comunidades tradicionais e povos originários já eram marcados pelas chamadas “guerras justas”.
Aliás, no estudo de Gomes et al. (2020), esclareceu-se que os processos de ocupação da região são intensificados por meio de um modelo de economia voltado para a exploração dos produtos da floresta e com base no trabalho escravo das populações originárias e todos os pertencentes às minorias sociais da época.
Metodologia
Para a construção deste artigo, adotou-se o que se infere a partir da leitura de Minayo (2012), que percebe as ciências como uma possibilidade de transformar os estudos realizados a partir de questionamentos pertinentes e específicos sobre a realidade estudada. E isso para buscar soluções para a coletividade que é alvo da pesquisa, sem esquecer os conhecimentos adquiridos pela ancestralidade, por meio de suas respostas e suas linguagens, que se fundamentam em métodos e técnicas conduzidas de modo coerente por seus representantes.
Ressalta-se que há diversos pensadores e teorias que embasam os estudos realizados acerca da própria inserção e relação do ser humano nos diversos meios (Yagiu et al., 2021). Tais elementos foram considerados no desenvolvimento do trabalho de pesquisa aqui exposto, a fim de permitir que os achados nas comunidades-alvo sejam estudados de modo conceitual.
Para o desenvolvimento desse artigo, foi utilizado o método de evidências qualitativas para argumentar os resultados do estudo por meio de análises e percepções conseguidas a partir da realização de entrevista com perguntas semiestruturadas junto às lideranças das comunidades-alvo desse estudo – Mangueiras e Salvá (Figura 01).
Figura 01. Comunidades Mangueiras (marcador azul) e Salvá (marcador laranja), em Salvaterra-PA, na ilha de Marajó.
Fonte: Google Earth, 2024.
Apoiando-se nas orientações de Yin (2015), que justificam a realização de um estudo de caso específico, o que compreende o estudo aqui realizado sobre as comunidades em questão, também se fez a pesquisa exploratória, visto que a problemática ainda é pouco discutida no âmbito das comunidades e no contexto priorizado por este artigo. A intenção nunca foi a de fazer generalizações a partir de amostragem probabilística, mas sim ter um entendimento aprofundado sobre o fenômeno estudado.
Utilizando ainda os princípios do mesmo autor para ressignificar pesquisas de estudo de caso, como a referente a este artigo, em sua obra sobre desenhos e métodos de uma pesquisa, Yin (2009, p. 39) descreve que: “O estudo de caso é uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo em profundidade e em seu contexto de vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente evidentes”. Toda essa organização e forma de delinear uma pesquisa permitiu aos pesquisadores deste artigo a observação dos fenômenos e acontecimentos dentro do espectro social das comunidades de Mangueiras e Salvá, a partir de um olhar mais amplo e construindo um diálogo interdisciplinar e transversal com os atores/participantes.
Com relação à escolha do tipo de pesquisa realizada neste artigo, escolheu-se o estudo de caso, pois trata-se de uma investigação relacionada a fatos específicos em duas comunidades tradicionais remanescentes de quilombos com características singulares. Um estudo piloto foi realizado nas comunidades em uma tentativa de redefinir os instrumentos e procedimento de coleta de dados na pesquisa. Houve a coleta de dados em múltiplas fontes para se ter a validação e veracidade das informações em corroboração com os dados obtidos. Utilizou-se ainda pesquisa bibliográfica com a coleta de dados e informações a partir de artigos, livros e revistas científicas nas múltiplas áreas do conhecimento para fundamentar as discussões e ampliar o saber aqui apresentado (“estado da arte”) (OLSEN, 2015). O foco da pesquisa realizada se concentrou na relação entre as ações das lideranças locais no período da pandemia da Covid-19 e os benefícios adquiridos e conquistados pelas comunidades quilombolas a partir das intervenções dessas lideranças, contribuindo, deste modo, para uma concepção ampliada da eficiência das lideranças, suas ações e iniciativas no período pandêmico.
As determinações sociais desses grupos sociais tornaram-se um referencial importante para a compreensão da complexidade de processos de governança-saúde coletiva e proteção dos territórios tradicionais e de seus ocupantes (OMS, 2020). E por tratar-se de um estudo das relações sociais, representações e percepções de sujeitos e a fonte ser constituída de consulta primária e referenciais teóricos, definiu-se como o método mais adequado para a compreensão do objeto de estudo a abordagem qualitativa. Essa abordagem, de fato, possibilita organizar e explicar o conhecimento acerca de como os seres humanos vivem, sentem e pensam.
Adotou-se, ainda, o modelo documental, por tratar-se de fontes primárias e pela qualidade das informações que este método possibilita. Assim, podem ser consultados documentos, muitos deles de acesso restrito, cuja consulta, segundo Olsen (2015), é permitida apenas para fins de pesquisa e uso no local da pesquisa. No entanto, essa possibilidade contribuiu em muito para a compreensão do objeto estudado.
A pesquisa trata de duas comunidades que vivem isoladas do centro urbano da cidade centro – Salvaterra, sendo separadas pelo rio Paracauari. Devido à necessidade de coleta de dados para esta pesquisa ter sido pensada de acordo com a dinâmica social e no dia a dia dessas populações, optou-se primeiro por um diálogo aberto e informal, em que a pesquisadora se apresentou para as lideranças locais e explicou no que consistia o trabalho. Nesse momento, o delineamento da pesquisa foi realizado contando com a participação ativa das líderes locais, direcionando as principais questões que deveriam ser discutidas, pensadas e refletidas.
As perguntas foram ajustadas para que ficassem de maneira apropriada para as condições locais e reais das comunidades, e as principais temáticas também foram selecionadas e assim foi-se desenhando o modelo de coleta de dados e os métodos que seriam utilizados para tal fim, sem que houvesse possíveis desgastes, confrontos e/ou constrangimentos tanto por parte da pesquisadora quanto pelas pessoas que participaram voluntariamente da pesquisa.
As comunidades de Mangueiras e Salvá, onde o estudo foi realizado, estão localizadas na ilha de Marajó, no município de Salvaterra, estado do Pará. Essa é uma área com presença marcante de comunidades remanescentes de quilombos, o que revela a complexidade de sua formação histórico-social em relação aos demais espaços que ocupam o município, suas relações e condições de vida. Em termos da presença do Estado nessa área, conta apenas com uma Unidade de Saúde (hospital municipal de Salvaterra), podendo ainda utilizar-se da infraestrutura do município vizinho Soure-PA, que dista 10 min na travessia de barcos pequenos (rabetas).
A maior parte das habitações é formada por casas de madeira, barro e algumas de alvenarias, construídas próximas umas às outras, e os moradores convivem com saneamento básico precário, ausência de opções de lazer e socialização que muitas vezes são supridas com atividades promovidas pela própria liderança (MALUNGU, 2006). E isso justamente para tentar conter o avanço da violência e da criminalidade do tráfico de drogas, além dos altos índices de gravidez juvenil.
As referências mais recentes do Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) do estado do Pará em 2000, na Região de Integração (RI) do Marajó, todos os municípios situavam-se na faixa de muito alta vulnerabilidade social. Já em 2010, apenas o município de Soure apresentou diminuição suficiente no IVS, que permitiu que ele fosse reclassificado para a faixa de nível de alta vulnerabilidade social.
Todos os demais municípios da RI também apresentaram diminuição do IVS em 2010, mas permaneceram na mesma faixa de nível de vulnerabilidade social (Araújo, 2017), o que retrata uma condição de esquecimento e marginalidade em um contexto global das ações promovidas pelo Estado.
Segundo dados do último censo do IBGE (2021), Salvaterra tem uma população estimada em 24.392 habitantes e sua principal atividade econômica é a pesca, extração do açaí e agricultura familiar. Tais atividades colocam este entre os municípios do Pará com menores coeficientes de fundo de participação municipal, de 1,4, representando um repasse para 2022 de R$18.644.414. Para este estudo, analisaram-se as informações prestadas pelas lideranças das comunidades coletadas no período de setembro a outubro de 2021.
Fez-se isso por meio de entrevistas online, em uma etapa que compreende ainda as restrições sanitárias quanto à aglomeração e ao isolamento social, por isso não se pode fazer contato presencial nas comunidades. Esse momento possibilitou a atualização das reflexões com base nas consequências da pandemia da Covid-19 nas comunidades estudadas. E foram realizadas entrevistas semiestruturadas à distância com as lideranças das comunidades (cada comunidade possui uma liderança), por meio de aplicativos multiplataforma de mensagens (WhatsApp e telefonemas), além do envio do documento em Word através do mesmo aplicativo contendo as questões que foram respondidas durante as entrevistas, que nesta etapa totalizaram 30 questionários respondidos, compreendendo as lideranças (2) e 28 moradores das duas comunidades (14 moradores de Mangueiras e 14 moradores de Salvá).
Importante salientar que a logística para chegar até as comunidades de Mangueiras e Salva é de difícil acesso e reduzida, e a maioria dos meios de transporte que passam nesse trecho são bicicletas e motos, precisando realizar a contratação de mototáxi para realizar o trajeto de maneira mais rápida, o que, no entanto, não é um serviço barato. Até aqui, os custeios foram cobertos pela pesquisadora e primeira autora.
As condições climáticas também foram determinantes para a realização das visitas técnicas. Isso porque no inverno amazônico se torna inviável, uma vez que as estradas de terra ficam alagadas e com muita lama. Tal realidade torna o terreno escorregadio e perigoso para o transporte de pessoas E a cheia do rio Paracauari há de ser destacada, pois a travessia até o outro lado do rio onde se localizam as comunidades se torna muito perigosa.
Considerações éticas: Ressalta-se que durante o desenvolvimento deste trabalho, o projeto de tese do qual este artigo faz parte foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Federal do Pará, uma vez que a pesquisa envolve pessoas e alguns temas sensíveis. As principais questões éticas envolvidas nessa pesquisa foram: a não identificação dos participantes voluntários desta pesquisa; o esclarecimento e a livre participação dos moradores na pesquisa com a aceitação dos termos de coleta dos dados; e a participação das comunidades na formulação e adequação do instrumento de coleta de dado, bem como as autorizações para a entrada da pesquisadora nos espaços das comunidades em períodos distintos ao longo de todo o desenvolvimento da tese, podendo a qualquer momento serem alteradas as condições de entrada e saída nas comunidades. Certificado de Apresentação de Apreciação Ética – CAAE: 69424123.4.0000.0018.
Resultados e discussão
Analisaram-se as narrativas relatadas pelas lideranças comunitárias nos processos participativos que acompanham o desenvolvimento histórico de lutas pela melhoria das condições de vida durante uma semana do mês de junho de 2022, em que foram apontadas algumas potencialidades e dificuldades observadas pela organização e socialização comunitárias. Foram apresentadas algumas questões contextualizadas pelos impactos ocasionados pela pandemia da Covid-19 e a partir daí seguiu-se a coleta dos dados.
Dificuldades observadas através da organização e socialização e nos processos participativos das lideranças comunitárias
Segundo as lideranças das comunidades que foram entrevistadas nesse estudo, a participação social é caracterizada como força coletiva que agrupa jovens, adultos e idosos sem distinção de gênero, possibilitando inclusão, empoderamento e autonomia. Tais ações possibilitam o desenvolvimento interno da comunidade sob a perspectiva da sua realidade e atendam as principais necessidades dos seus moradores.
A qualidade e efetividade das práticas desenvolvidas dentro desses espaços está associada à possibilidade de formação de vínculos com o objetivo de reivindicar ou criar formas afirmativas de superação da violação dos direitos (Costa & Silva, 2016). Todavia, a falta de incentivo e ausência de políticas públicas, ou a dificuldade de acesso a esses auxílios, fornecidos pelo governo local, representa uma das grandes dificuldades.
Segundo relato da moradora A da comunidade de Mangueiras, o estímulo para a participação dos moradores nos assuntos das comunidades é fundamental para a discussão de temas relevantes para os quilombolas e a criação de atividades que incluam os moradores:
Os projetos desenvolvidos na comunidade incentivam a participação de jovens e mulheres na produção de artefatos regionais que caracterizam a cultura marajoara e possibilitem geração de renda para essas famílias. Os participantes sentem que os projetos funcionam como uma terapia que trata de algumas problemáticas comuns na região que cerca a comunidade, tais como violência contra a mulher e tráfico de drogas (Informação verbal da liderança A, Comunidade Mangueiras, Salvaterra-PA, 08/05/2023, 10h).
Essa consciência crítica que surge diante da realidade e cerca o pensamento dessa liderança proporciona uma nova práxis que, por sua vez, abre para novas formas de consciência. A análise de Martín-Baró (2017) possibilita inferir que o processo de conscientização tem como consequência o fortalecimento dos sujeitos e da comunidade, pois as pessoas percebem que as situações de opressão que vivem são compartilhadas pelas outras pessoas da comunidade e isso aproxima e estimula a construção de um novo saber e de novas práticas que possibilitem o crescimento humano, social e econômico desses espaços.
No período pandêmico, as comunidades de Mangueiras e Salvá ficaram isoladas para depois do rio Paracauari e as atividades dos moradores ficaram limitadas por conta do distanciamento social, e as medidas sanitárias adotadas foram feitas de maneira sincronizada nas duas comunidades, conforme relata a liderança de Salvá:
Para a segurança da comunidade e dos moradores no ano de 2020 e 2021 tivemos que montar uma porteira para controlar o acesso de entrada e saída na nossa comunidade, além da saída só ser permitida para os casos de extrema necessidade como idas ao hospital para quem estava doente, idas ao supermercado, farmácias sendo que as pessoas respeitaram essa regra e controlavam para ficarem isolados em casa, mesmo depois de se vacinarem (Informação verbal da liderança B, Comunidade Salvá, Salvaterra-PA, 09/05/2023, 11h).
A ausência e/ou omissão da participação do Estado dentro desses espaços provocando situações de desamparo social (Dimenstein & Neto, 2020) favorece a instalação de problemáticas agravantes como o tráfico de drogas, a exploração sexual infantil e a violência contra a mulher, que segundo da Silva Maia e Lobo (2013), são problemas com difícil resolução nos planos prático e ideológico.
As fragilidades acima se inserem num contexto de extrema pobreza e falta de saneamento básico que colocam cotidianamente em risco a saúde física e mental dos habitantes. Conforme De Jesus et al., (1960), tais condições geram um sentimento de esquecimento e exclusão social e que agrava o sofrimento, uma vez que o lugar onde se mora reflete na dignidade, como descrito no livro Quarto de despejo.
Apesar da vulnerabilização desses povos que são conhecidos como resistência, pela arte, pela luta, pelo território, pela cultura e tal postura em momentos ainda mais delicados como no caso da pandemia da Covid-19, pode-se resgatar o conceito e apropriação das malungagens que conforme Sarmento e Sousa (2022) trata-se da multiplicidade de atividades que são compreendidas pelos quilombolas, de maneira autônoma para enfrentar situações caóticas que afetam diretamente a sua existência enquanto grupo étnico.
Essas malungagens podem ser interpretadas como um conjunto de ações coordenadas e ordenadas particularmente pelos indivíduos envolvidos de maneira a gerirem os seus locais de moradia, promovendo uma ascensão socioterritorial, proveniente de todo empenho coletivo para garantir aspectos básicos de segurança e bem-estar aos envolvidos nesse processo e, consequentemente, reafirmar a luta pela sobrevivência dos remanescentes de quilombos.
As perguntas feitas seguem o modelo do questionário utilizado e apresentado no ANEXO deste estudo como roteiro. A partir das entrevistas, coletaram-se outras informações que não estão diretamente descritas nas questões propostas, mas que surgem ao longo da discussão e descrição sobre a dinâmica das comunidades no período de pandemia da Covid-19, conforme o que foi relato pelas lideranças a seguir:
Durante a pandemia foram instaladas barreiras sanitárias nos portões de entrada de cada uma das comunidades quilombolas, nesse período a saída e entrada de moradores da comunidade ficou restrita fazendo com que muitas famílias tivessem dificuldade de acesso ao auxílio emergencial, a bancos, farmácias e aos supermercados para compra de insumos. Nesse momento, muitos deixaram de respeitar a barreira, inclusive até agredindo quem ficasse de guarda, principalmente quando eram mulheres. Isso demonstrou a necessidade de adequar um esquema para permitir que as pessoas vacinadas e com máscara pudessem ter o passe livre na comunidade. Essa abertura, no entanto, foi restrita aos moradores, pessoas de fora continuaram com acesso bloqueado à comunidade (Informação verbal da liderança A, Comunidade de Mangueiras, Salvaterra-PA, 08/05/2023, 10h).
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020), em 18 de março de 2020, os casos confirmados da Covid-19 já haviam ultrapassado 214 mil em todo o mundo. Não existiam planos estratégicos prontos para serem aplicados a uma pandemia de coronavírus, pois tudo era muito novo. Entre as ações aplicadas no sentido de prevenção da doença, está o isolamento e o distanciamento social, que provocaram uma série conflitos, principalmente se tratando de comunidades já isoladas em alguns aspectos.
Nessas comunidades, observou-se a ausência do poder público através de políticas públicas na área da saúde e saneamento básico que contemplem as necessidades dessas pessoas e que viabilizem a promoção da saúde através da estruturação do único posto de saúde que atende as duas comunidades e que, no entanto, não possui estrutura adequada, medicamentos e profissionais da saúde necessários para o atendimento da população, além de não terem instrumentos suficientes para a realização exames básicos, fazendo com que essas pessoas tenham que se deslocar até Salvaterra para um atendimento no hospital do município, sendo que muitos moradores não têm um meio de transporte para locomoção e muitas vezes encontram-se acamados, impossibilitando o seu deslocamento da comunidade.
Por outro lado, verificou-se a formação de redes de solidariedade, de iniciativas e respostas comunitárias que, como em outros desafios, não somente sanitários, já vividos, são elos fundamentais na construção de respostas que têm exigido reflexões constantes (Nakamura & Silva, 2020). Isso reflete o que aconteceu nesta comunidade que, apesar de todo o estresse, contou com a solidariedade dos moradores, cooperação necessária para enfrentar a minimização da presença dos governos locais.
Para manter os gastos internos com a compra de materiais que auxiliem os moradores a desenvolver trabalhos e ganhar uma renda extra para auxiliar as famílias, a comunidade de Mangueiras desenvolve atividades e práticas artesanais que carregam consigo os fundamentos ancestrais dos quilombos, conforme explicado pela moradora A:
Aqui na nossa comunidade, realizamos a confecção de blusas, turbantes e outros artefatos da cultura quilombola junto às mulheres através do “Grupo de Mulheres Sementes do quilombo” que se fortaleceu em 2019, o grupo de crianças que apresentam danças folclóricas como forma de fortalecimento e divulgação da cultura, além do grupo “Abayomi” que empodera os jovens para o surgimento de novas lideranças (Informação verbal da liderança A, Comunidade de Mangueiras, Salvaterra-PA, 08/05/2023, 10:30h).
Todas essas atividades que já vinham sendo realizadas serviram de incentivo para que a comunidade, mesmo isolada continuasse produzindo e gerando resultados ainda que aquém ao programado, mas ajudando como forma de terapia, já que um dos impactos mais marcantes provocados pela Covid-19 foram os problemas psicológicos que as pessoas passaram a desenvolver em vista ao isolamento e distanciamento social, medo da contaminação e da morte.
Desse modo, sobre o tratamento dado a cada situação vivenciada em espaços tão peculiares, segundo Freitas, Napimoga e Donalisio (2020), é preciso considerar a heterogeneidade dos indicadores entre diferentes regiões com transmissão. Tais indicadores variam de acordo com ações, rotinas, disponibilidade de suprimentos, estrutura de serviços de saúde e de vigilância, questões culturais e políticas.
No caso de comunidades tradicionais que geralmente se localizam distantes dos centros urbanos, de acordo com Gohn (2019), a necessidade de adoção de práticas urgentes e que protegessem os seus moradores foi inevitável. Assim, as consequências desse isolamento ainda mais agressivo puderam ser sentidas, principalmente pelas famílias mais carentes dentro desses núcleos familiares.
A presença de doenças como a Covid-19 em comunidades tradicionais sendo entendidas como algo que explica as dinâmicas sociais dessas populações nos ajuda a perceber a interrelação entre saúde e as práticas do dia a dia da gestão das governanças e lideranças locais (Grossi & Toniol, 2020). Isso permite compreender melhor as etapas de governabilidade eficaz e de aplicação efetiva de políticas públicas que visam a melhoria da qualidade de vida dessas populações.
Entre os efeitos adversos desse isolamento ainda se pode mencionar as dificuldades de comercialização de produtos manufaturados, como artesanato e outras obras de arte produzidos pela comunidade. Tal realidade foi demonstrada também pela pesquisa de Kato et al. (2021), que entrevistaram comunidades tradicionais de pescadores. E quando perguntadas sobre os efeitos do isolamento social na frequência de consumo de pescado, 50,43% dos respondentes não modificaram a frequência desse consumo.
No entanto, uma parcela de 26,92% reduziu o consumo, 4,27% deixaram de consumir o pescado, enquanto 18,38% aumentaram o consumo. Isso significa que de algum modo, o isolamento social atingiu o sistema de produção adotado por esses indivíduos, enfraquecendo a geração de renda com a prática da pesca e impactando na economia doméstica dessas famílias.
Apesar dos entraves, as lideranças conseguiram se organizar para enfrentar a disseminação do vírus. E o fizeram para conscientizar os moradores, para utilizar os recursos oferecidos pela tecnologia e fazer parcerias com organizações como a Coordenação Estadual das Associações de Remanescentes de Quilombos do Estado do Pará (MALUNGU).
E isso para a obtenção de itens necessários para a proteção, tais como máscara, álcool em gel, sabão, detergente e água sanitária, conforme foi dito pela moradora:
A doação de cestas básicas no início da pandemia foi bem baixa, muitas famílias passaram por muitas dificuldades, umas mais que as outras. Conseguimos doações da prefeitura de Salvaterra, no entanto, a quantidade não atendia a toda comunidade por isso tinha que ser feita uma seleção para ver qual família precisava mais. No segundo momento da pandemia, já no início de 2021 a Fundação Cultural Palmares fez a doação de uma cesta para cada família e já na terceira fase da pandemia no mês de junho/2021 a MALUNGU conseguiu doar três cestas básicas para cada família, o que nos trouxe um alívio, principalmente pensando naquelas famílias mais necessitadas (Informação verbal da liderança A, Comunidade de Mangueiras, Salvaterra-PA, 10/05/2023, 11h)
Os relatos aqui mencionados foram coletados a partir de fontes secundárias de informação, utilizando da ferramenta WhatsApp para o envio e recebimento da coleta de dados através de perguntas semiestruturadas no questionário que está presente no ANEXO. Respeitou-se o tempo informado para a entrega das informações, bem como as falas na íntegra de cada líder comunitária foram reproduzidas aqui na escrita desse artigo.
Todos os resultados apresentados aqui procuram destacar o entendimento de duas moradoras engajadas nas questões de seus territórios com atuação contínua nos espaços de luta e discussão, demonstrando total interesse nas melhorias paras as suas respectivas comunidades. Tal fato ampara as inferências adotadas a partir da interlocução das moradoras do cenário pós-pandemia nas comunidades de Mangueiras e Salvá, na Ilha de Marajó, garantindo veracidade e confiabilidade nos resultados, visto que se trata de explanação do ponto de vista de pessoas de dentro das comunidades que não possuem interesses outrem para relatar situações que de fato não pudessem ter ocorrido.
Não foi possível dialogar com as lideranças no período mais crítico da pandemia, visto que os esforços estavam voltados para as necessidades dos moradores das comunidades. Nesse caso, o tempo de coleta dos dados foi de acordo com a autorização de participação da pesquisadora, pós-etapa de isolamento social. Entende-se que os meios secundários de coleta de dados (através de aplicativos de redes sociais) limita bastante uma análise mais integrada da situação que viveram as comunidades, mas entende-se que foi um processo excepcional e que ainda sim utilizaram-se os instrumentos e métodos que estavam disponíveis naquele momento.
As visitas in loco começaram a acontecer em 2022 e nesse momento foi necessária uma organização e planejamento de logística e orçamento para chegar até as comunidades, visto que até então carros não chegavam até elas, eles ficavam do outro lado do rio Paracauari. A distância do centro urbano de Salvaterra até as comunidades dista aproximadamente 50 Km, e esse trajeto foi feito com o auxílio de mototáxi que foi contratado para realizar o traslado ida-volta, que demorava em torno de duas horas. Ainda tinha que ser paga a travessia do rio Paracauari na balsa até a comunidade de Mangueiras. De Mangueiras até Salvá, são aproximadamente 10 Km (10 minutos de mototáxi). Todas essas andanças também foram desafios superados para se chegar até as comunidades e poder conhecê-las de perto e entender a dinâmica local de forma a ter uma vivência particular e interação pessoal.
Conclusões
Verificou-se que as lideranças das comunidades remanescentes de quilombos no município de Salvaterra-PA têm uma história de conquistas com relação às melhorias das condições de vida. Isso a despeito da existência do que se consideram fragilidades como, por exemplo: a atual falta de mobilização por parte do governo local dentro das comunidades; também a percepção ainda em construção sobre o empoderamento dos mais antigos e dos mais jovens sobre suas origens e ancestralidade; e a desarticulação entre as lideranças e a violência que ocorre nos arredores do espaço da comunidade, como o tráfico de drogas e a violência contra a mulher.
Apesar da existência de potencialidades como os processos de conscientização, organização e diálogo com a comunidade para atingirem alguns objetivos – tais como a divulgação e o fortalecimento dos grupos existentes dentro das comunidades formados e coordenados pelos próprios moradores e sua liderança, grande parte das ações ainda não resultou em uma efetivação de direitos e políticas públicas de saúde, educação, assistência ou cultura.
As precariedades na qualidade de vida na comunidade, que foram acentuadas pela pandemia da Covid-19, se colocam como uma corrente impulsionadora para a participação social, pois se torna uma necessidade concreta e urgente a ser instalada efetivamente através das governanças locais.
Ainda que existam os conflitos apresentados durante o período de pandemia da Covid-19 nas comunidades quilombolas do município de Salvaterra-PA, ressalta-se que a participação das lideranças locais vem sendo de fundamental importância para aquisição de insumos e suprimentos para dentro da comunidade de maneira a diminuir os impactos principalmente econômicos trazidos pela pandemia, fortalecendo a união dos moradores.
A pandemia da COVID-19, segundo as informações apresentadas pelas lideranças das duas comunidades quilombolas, trouxe um impacto na saúde mental da população até os dias de hoje. Isso pode ser percebido através de alguns aspectos como desânimo, alcoolismo e depressão, que aumentaram significativamente com o período de isolamento social.
O desgaste social foi um evento sentido em ambos os lados das comunidades: tanto no entrelace dos rituais e práticas da cultura ancestral como rezas e benzimentos, além do apagamento de certas memórias das comunidades que já encontravam dificuldades em agregar e difundir todo o conhecimento histórico das populações quilombolas naquela região, bem antes da pandemia.
A necessidade de adoção de medidas sanitárias ressoou aspectos de vulnerabilização dessa região Amazônica, em especial a ilha de Marajó, que possui um acervo cultura e ambiental riquíssimo contrastando, no entanto, com a vigilância sanitária local e o saneamento básico inexistente em muitas dessas localidades. A dificuldade de se conseguir ter acesso à água potável é muito difícil e a situação de moradia das famílias é, em muitos casos, precária. Fazer cumprir os critérios obrigatórios de práticas sanitárias nas duas comunidades foi difícil, caótico e preocupante.
Para a atenção necessária a essas populações, sugere-se que sejam feitas análises de riscos de saúde com a participação da secretaria de saúde municipal de Salvaterra e que ainda sejam realizadas ações de cunho expositivo e explicativo que conscientize os moradores para adequações necessárias no modo de se relacionar com o espaço em que vivem e do incremento de políticas públicas que contemplem a aquisição de instrumentos e infraestrutura para fornecer subsídios básicos para a melhoria da qualidade de vida dessas pessoas.
Um olhar mais humano para as comunidades quilombolas estudadas neste artigo possibilitaria uma agregação dos moradores a partir da interlocução das próprias lideranças locais que, difundindo o conhecimento tradicional ancestral e os benefícios proporcionados pelas práticas dos mais antigos com uso de plantas medicinais regionais, podem promover bem-estar e ser aliadas no tratamento das enfermidades mais comuns nesses territórios.
Nesse sentido, aconselhou-se que fosse feita uma organização (espécie de inventário) das principais plantas utilizadas para fins de tratamento no período na pandemia, com o resgate do conhecimento milenar trazido pelos antepassados que possibilitaram para muitas famílias uma melhora nos sintomas de virose que permearam os moradores no período da Covid-19.
Sabe-se que a vacinação foi fundamental para frear os sintomas e os casos de Covid-19 em todo o mundo e que só foi possível meses depois do decreto de que o estaríamos em meio a uma pandemia (emergência de saúde global). Para as comunidades Mangueira e Salvá, esse ponto não foi diferente, aliás o processo de vacinação na região é bem tumultuado. Conforme relatado ao longo desta pesquisa, as vacinas para chegarem até essas localidades precisam passar por toda uma logística que, muitas vezes, oferecem riscos de perda e/ou desperdícios provocados pelo transporte precário, armazenamento inadequado do material e demora na chegada até as localidades.
Destaca-se, também, a necessidade de uma organização e planejamento dos governantes públicos da região para direcionar esforços e garantir a chegada dessas vacinas, bem como de medicamentos, médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde para promoverem ações que levem dignidade a essas pessoas e às que não podem se locomover e que necessitam de atendimento em domicílio.
Este trabalho ainda deixa lacunas com relação ao desenvolvimento de outros temas relacionados ao fenômeno da participação social no período da pandemia, tais como: a superação do assistencialismo (auxílio emergencial); a questão do gênero, tendo em vista o protagonismo das mulheres nesta comunidade; os aspectos que levam à governança local; e o papel que o Estado desempenha nas comunidades vulneráveis.
Estas questões permanecem como temas de desejável investigação futura. E isso com o propósito de contribuir para o necessário enfrentamento das desigualdades dentro de comunidades tradicionais remanescentes de quilombos como as que foram alvo nesse estudo.
Referências Bibliográficas
Acevedo Marin, R. E. A. (2020). Pandemia da Covid-19 na História do Tempo Presente. Afros & Amazônicos, 2(2), 95-101.
Araújo, M. N. F., & Simonian, L. T. L. (2016). Governança ambiental e turismo: a participação de atores no Parque Nacional Tortuguero, Costa Rica. Pasos–Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 14(2), 319-334.
Araújo, F. R. S. D. (2017). A vulnerabilidade social no estado do Pará. Brasilia: IPEA
Costa de Castro, N.J., Tavares Parente, A., Ferreira de Aguiar, V.F., Dias Borges, W., & Pastana Ferreira, I. (2022). Ações político sociais frente à COVID-19: colaboração e produção de produtos tecnológicos. Amazonia Investiga, 11(55), 19-28. https://doi.org/10.34069/AI/2022.55.07.2
Costa, S. L. da & de Silva, C. R. C. e. (2016). Afeto, memória, luta, participação e sentidos de comunidade. Revista Pesquisas E Práticas Psicossociais, 10(2), 283-291. Recuperado de http://seer.ufsj.edu.br/revista_ppp/article/view/da%20Costa%2C%20de%20Castro%20e%20Silva
da Silva Maia, D., & Lobo, B. D. O. M. (2013). O desenvolvimento da habilidade de solução de problemas interpessoais e a convivência na escola. Psicologia em Revista, 19(1), 17-29.
De Almeida, A. W. B., Marin-Acevedo, R. E., & de Melo, E. A. (2020). Pandemia e território. São Luís: UEMA.
De Jesus, C. M., Dantas, A., & Teixeira, A. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada (Vol. 1). Livraria F. Alves.
Dimenstein, M., & Neto, M. C. (2020). Abordagens conceituais da vulnerabilidade no âmbito da saúde e assistência social. Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(1), 1-17. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ppp/v15n1/02.pdf
Freitas, A. R. R., Napimoga, M., & Donalisio, M. R. (2020). Análise da gravidade da pandemia de Covid-19. Epidemiologia e serviços de saúde, 29, e2020119.
Gohn, M. D. G. (2019). Teorias sobre a participação social: desafios para a compreensão das desigualdades sociais. Caderno CrH, 32(85), 63-81.
Gomes, D. O. de., Brandão, W. N. M. P., & Madeira, M. Z. A. (2020). Racial justice and human rights of traditional peoples and communities. Revista Katálysis, 23(2), 317.
Google Earth (2024). Official site. http://earth.google.com/. Acesso em: 10 março 2024.
Grossi, M. P., & Toniol, R. (2020). Cientistas sociais e o coronavírus. ANPOCS.
IBGE (2021). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/salvaterra/panorama
Kato, H. D. A., de Sousa, D. N., Maciel, E. D. S., de Lima, L. K. F., dos Santos, V. R. V., & Chicrala, P. C. M. S. (2021). Efeitos do isolamento social durante a pandemia de Covid-19 na comercialização e no consumo de pescado no Brasil. Embrapa Pesca e Aquicultura.
Lifschitz, J. A. (2012). Comunidades tradicionais e neocomunidades. Contra Capa.
MALUNGU. Projeto, N. C. S. D. A. (2006). Quilombolas da Ilha de Marajó. Belém: Coordenação Estadual das Associações de Remanescentes de Quilombos do Estado do Pará - Malungu.
Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais. Editora Vozes Limitada.
Minayo, M. C. D. S. (2012). Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciência & saúde coletiva, 17, 621-626.
Mondardo, M. (2020). Povos indígenas e comunidades tradicionais em tempos de pandemia da Covid-19 no Brasil: estratégias de luta e r-existência. Finisterra, 55(115), 81-88.
Nakamura, E., & Silva, C. G. D. (2020). O contexto da pandemia da Covid-19: desigualdades sociais, vulnerabilidade e caminhos possíveis. Cientistas sociais e o coronavírus. Florianópolis: ANPOCS e Tribo da Ilha.
Olsen, W. (2015). Coleta de dados: debates e métodos fundamentais em pesquisa social. Penso Editora.
OMS - World Health Organization (2020). Criteria for releasing COVID-19 patients from isolation. Disponível em: https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/criteria-for-releasing-Covid-19-patients-from-isolation
Pezzuti, J., & Azevedo-Ramos, C. (2016). Desafios amazônicos. Belém: NAEA/UFPA, E-book (592 p.). https://livroaberto.ufpa.br/items/aad5b3d1-a9ac-4fdd-977d-0e9b22774a47
Perez, O. C., & Souza, B. M. (2022). Do público ao privado: representações sociais de associações acerca da responsabilidade com a questão socioambiental. Novos Cadernos NAEA, 25(1).
Rhodes, R. A. W. (2005). La nueva gobernanza: gobernar sin gobierno. La gobernanza hoy, 10, 99-122.
Rustamzade, A.. & Huseynov, S. Z. (2023). The constitutional nature of local self-government. Amazonia Investiga, 12(72), 226-235. https://doi.org/10.34069/AI/2023.72.12.20
Sablayrolles, P. J. L., Porro, N. S. M., & de Oliveira, M. C. C. (2019). Construindo a governança local para a gestão socioambiental na Amazônia. Retratos de Assentamentos, 22(2), 14-38.
Sarmento, M. P., & Sousa, J. L. (2022). Quilombolas de Salvaterra, PA: Malungagens, práticas de autogestão e conflitos nas batalhas contra covid-19. Terceira Margem Amazônia, 7(18), 227-248.
Shiraishi, J. N. (2007). Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais no Brasil: Declarações. Convenções Internacionais e Dispositivos Jurídicos Definidores de uma Política Nacional. Manaus: UEA.
Simonian, L. T. L. (2018). Políticas públicas e participação social nas Reservas Extrativistas amazônicas: entre avanços, limitações e possibilidades. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 48(1), 118-139.
Yagiu, H., Silva, C. R. C., Euzebios Filho, A., & Martin, S. T. F. (2021). Participação social de lideranças comunitárias em um contexto de desigualdade social e no enfrentamento da pandemia da COVID-19: um enfoque psicossocial. Saúde e Sociedade, 30(2), e210008.
Yin, R. K. (2009). Case study research: Design and methods (Vol. 5). sage.
Yin, R. K. (2015). Estudo de caso: planejamento e métodos. Bookman editora.
https://amazoniainvestiga.info/ ISSN 2322-6307
This article is licensed under the Creative Commons Attribution 4.0 International License (CC BY 4.0). Reproduction, distribution, and public communication of the work, as well as the creation of derivative works, are permitted provided that the original source is cited.